segunda-feira, 14 de março de 2022

CARTA PARA MINHA TERAPEUTA: Sobre o monstro que mora em mim

 

Dentro mim tem uma casa. Uma casa gigante, que cabe inúmeras pessoas. Tem banheiro, tem sala, cozinha e até piscina. Dentro de mim tem uma casa gigante que pode abrigar inúmeras pessoas. Inúmeras na minha cabeça, porque maior que a casa é quem mora nela. Não tenho nem corpo pra isso, mas ele se abriga, se alimenta, se ajeita como pode e de vez em quando me cutuca, porque o espaço ali está pequeno pra ele. Mas eu sempre lembro: dentro de mim tem uma casa. Uma casa gigante que cabe inúmeras pessoas, mas ele mora só. Ou não. A casa abriga tantos, mesmo sem querer ou eu conhecer direito, mas ele é o maior morador e o que mais fala comigo. Dono de uma voz poderosa. Imagino que seja bonito e perfeitamente incrível. Ele acabou de me dizer, inclusive, que perfeitamente incrível não faz parte do linguajar culto. Mas ele não sabe porque estou dizendo isso. Mas ele está me dizendo pra refazer. Nunca nos vimos pessoalmente. Nem quero. Morando dentro de mim ele já acaba comigo. Me fez perder trabalho e já, até, segurou minha garganta de um jeito que minha voz embargou e eu falhei no teste. Em um? Que nada, em vários. Ele diz que sou desengonçada, mas fica quietinho quando me elogiam. Ele diz que não vou chegar aonde quero, mas se encolhe todo quando dou um passo a mais. No fundo, bem lá fundo ele é gente boa. Digo isso porque quando ele tá no fundo, significa que está escondido e não aparece, e todo monstro escondido é uma ilusão e uma ilusão de vez em quando faz bem, não é? Espero que ele não seja peludo, porque eu odeio pelos em mim e ele me lembra disso toda vez que sinto preguiça de tirá-los. Espero que o texto dele seja impecável, porque ele sempre diz que o meu tá fraquinho e que eu sou uma farsa. Eu? Uma farsa? Olha só pra ele, que mal sai de dentro de mim. Numa discussão nossa, agora a pouco, ele me disse que eu não o liberto. Pasmem!, como vou libertá-lo se ele tá grudado lá na casa? Alguém me ajuda a tirá-lo de dentro de mim? Será que água morna funciona? Corticoide não ajudou, só o alimentou. Elogios deixam ele encabulado. Ele sempre sopra baixinho “eles só querem te agradar”, mas finjo que não ouço, porque meu ego gosta de uma massagem.  Falando em massagem, será que se eu esfregar devagarinho ele sai? Pera, esfregar o que? O ego? A confiança? A esperança? Não sei. Eu quero que ele vá embora. Acho que ele também não me aguenta mais. Mas ele tá dizendo que não pode ir, porque eu o prendi. Pasmem: me disse que aprendi a viver com ele e uso ele, inclusive, de apoio. O monstro é minha bengala e me ajuda nas minhas fugas derradeiras da vida e do sucesso. Sucesso? O que é isso? Ele diz que não vou alcançar e me da, várias desculpas pra não tentar. "Tentar pra que? Você só vai se decepcionar de novo"- ele me diz. Hora eu o entendo, hora não. Quando eu não o entendo, eu não o ouço e eu sigo, o meu peito explode de ansiedade. Eu quero saber o que os outros estão pensando. Mas isso logo passa, porque estou fazendo e não pensando, mas, quando eu dou ouvidos pra ele, a coisa não flui. O peito dói de angústia. Eu ganho um super poder que me permite ver reprovação nos olhos de quem ainda nem me viu. Como pode? Não sei, eu vejo. Eu vejo, eu sinto e logo eu desisto. E depois eu me arrependo. Depois eu tento de novo. Ele volta. Eu o escondo e eu consigo. Ele se esconde, mas continua em mim, porque, dentro de mim tem uma casa. Uma casa  gigante. Nessa tem um morador que eu alimento com a doce esperança de não ser nada, porque meu ser nada é exatamente tudo o que ele quer e precisa para poder viver.

CARTA PARA MINHA TERAPEUTA: De quando tiraram minhas vendas

 

Tiraram as minhas vendas. Eu estou nua. De roupa? Não, de vendas. O mundo está mais claro e de dentro pra fora eu quero gritar. De fora pra dentro eu quero viver. Posso gritar vivendo? Não provei isso ainda sem as vendas. Caramba, eu existo. Eu resisto. Eu sou forte. Eu sou resiliente. Eu sou mulher que sente desejo, que sente medo, que faz piada besta, que senta em qualquer esquina pra conversar, que não dispensa uma confusão em busca de respeito e que renasce a cada riso que entra pelos tímpanos. Eu sou mulher que chora. Eu sou mulher que vive e tenta a todo momento tirar suas vendas, erguer a cabeça e dizer: ‘puta merda, era mais fácil que eu imaginava’. Isso eu tento, mas fácil não é. Nada é fácil. Eu sou mulher resiliente, mas qual mulher que não é? A mulher já nasce se justificando e sendo vendada. A mulher já nasce sendo oferecida como par, como modelo, como dona, como o que os outros querem que ela seja. Mas ela já nasce forte. Já nasce com um choro que estoura vidros da maternidade e segue sendo quem ela deseja ser. Colocam grades e status de diferentes tipos para a mulher. Colocaram várias para mim e hoje, com a alma despida de preconceitos, com o medo tentando me vendar de novo e a resiliência que eu descobri existir em mim, eu corto, grade por grade e faço desses ferros vários trilhos para poder traçar novos caminhos. Caramba, quanto buraco. Caramba, quantas portas fechadas. Caramba, uma luz. É pra ela que eu olho, porque as portas fechadas não me interessam, mas a luz que emana do fundo da resiliência e reflete aonde devo olhar me cabe como luvas. Sou mulher. Sou frágil. Sou forte. Tenho um auê de hormônios em mim. Sou filha. Sou neta. Sou mulher e trago comigo o olhar cravado de quem me viu crescer. Sou neta. Sou filha. Sou mulher. Sou a geração que quebra conceitos e que aprende que a força do antepassado vem para somar, mas vida é exatamente o caminho que escolho trilhar e o meu caminho é feito de todas as grades que eu quebro e de todas as frestas de luz que eu vejo a cada porta escura que se fecha. A minha vida pertence a mim. A minha força vem de mim. À elas, que passaram por aqui e me permitiram ser quem sou, deixo a eterna gratidão por poder viver. Eu sou mulher e escolho viver do jeito que me permito viver e não exatamente como querem ou permitem que eu viva.

Mariane Mirandola,
2022

CARTA PARA MINHA TERAPEUTA: Sobre o monstro que mora em mim

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